ARTIGO: ASSEMBLEIA VIRTUAL DE CONDOMÍNIOS SOB A ÉGIDE DA NOVEL LEI 14.010/2020

Ércio de Arruda Lins*

 Produzido em: 21/06/20

Certa vez, alguém disse que “lei boa, era lei curta”. Ledo engano. Parodiando Oscar Wilde, não existe “lei boa” ou “lei ruim”. O que existe é norma bem feita, e norma mal feita. A Lei 14.010, de 10/06/20, editada de afogadilho, tendo por objeto a adoção de “Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia do coronavírus (Covid-19)”, no que concerne especificamente à assembleia virtual de condomínios, é bastante vaga, quase ruim.

O art. 12 do citado Diploma Legal é de uma simplicidade absurda, deixando margens elásticas para multiplicidade de interpretações, o que é perigoso para a segurança jurídica das relações. Na prática, cada condomínio ou administradora pode entender de um jeito, e isso desaguar no cartório, responsável pelo registro da ata da assembleia geral, que pode ter entendimento totalmente diverso. Pronto! A confusão está instalada. Veja-se abaixo a transcrição do indigitado dispositivo, verbis:

Art. 12. A assembleia condominial, inclusive para os fins dos arts. 1.349 e 1.350 do Código Civil, e a respectiva votação poderão ocorrer, em caráter emergencial, até 30 de outubro de 2020, por meios virtuais, caso em que a manifestação de vontade de cada condômino será equiparada, para todos os efeitos jurídicos, à sua assinatura presencial.

Parágrafo único. Não sendo possível a realização de assembleia condominial na forma prevista no caput, os mandatos de síndico vencidos a partir de 20 de março de 2020 ficam prorrogados até 30 de outubro de 2020. 

De plano, sem grande esforço de hermenêutica, principalmente em razão do teor do art. 1º, caput, da citada Lei[1], dessume-se que é uma medida transitória, de caráter emergencial, que poderá ser adotada até a data-limite de 30/10/2020. Todavia, há pontos que merecem ser aclarados, a saber: se não existir norma local (municipal ou estadual), restringindo aglomerações, poderá o condomínio exercer a faculdade de realizar assembleia virtual? Qual o formato de uma assembleia virtual? O que quis dizer a lei quando estipulou que a manifestação de vontade de cada condômino equipara a sua assinatura presencial? Que justificativas poderiam ser aceitas para não realizar a assembleia virtual e prorrogar o mandato do síndico para 30/10/2020? São esses pontos que aqui serão abordados.

Em que pese o uso da locução “poderão ocorrer”, o que leva a crer ser uma faculdade, a realização da assembleia no modo virtual será obrigatória quando houver medidas locais de isolamento social, específicas ou genéricas, que não permitam a aglomeração de pessoas. Há que conjugar a novel Lei com as normas locais da pandemia, até porque, conforme decisão do STF[2], é competência dos municípios e dos estados editarem esse tipo de norma. Agora, se não existe a restrição de aglomeração, duas possibilidades se apresentam: ou o condomínio realiza a assembleia geral de modo presencial, ou, com supedâneo no art. 1.348, V, do Código Civil[3], faz a opção pela forma virtual. Neste último caso, o condomínio estaria exercendo a faculdade da Lei Federal.

Em relação ao formato, é necessário fazer distinção entre assembleia virtual, reunião virtual e enquete.

A enquete, na literalidade da palavra, é um “conjunto de depoimentos ou de pesquisas com o intuito de esclarecer uma questão, geralmente organizado por uma autoridade, por um jornal, por uma empresa privada ou por uma organização pública”[4]. Em outros termos, é uma forma simples de ouvir a opinião do público-alvo. No âmbito dos condomínios, pode-se fazer enquete, por exemplo, para saber se vai instalar no aparelho de televisão da academia a assinatura da TV fechada “A”, “B” ou “C”. É uma votação. Enquete não é assembleia virtual.

A reunião virtual, por seu turno, poderá ser feita com ou sem imagens das pessoas, lembrando que, em razão da pandemia, várias plataformas de reuniões estão sendo usadas (Zoom, Google Meet, WhatasApp, Facebook Messenger, Google Hangout, Skype, Jitsi, Line etc), sendo que cada uma delas tem seu próprio nível de segurança e de quantitativo de pessoas que podem participar. A forma mais usual é realizar reuniões com imagens das pessoas. Assim, em regra, para conduzir os trabalhos e evitar sobreposições de falas ou discussões mais acaloradas ou inúteis, recomenda-se designar um mediador, inclusive, com poderes de corte do microfone dos participantes, sem descambar, contudo, para o autoritarismo. Essas reuniões podem ser gravadas, ou não. Elas também permitem mostrar gráficos, documentos etc. Nos condomínios, esta ferramenta é aconselhável para realização de reuniões de conselhos e de comissões. É uma ótima ferramenta de trabalho que, inclusive, veio para ficar. Depois da pandemia, muitas empresas e instituições, incluindo condomínios, devem continuar usando-a, vez que otimiza tempo e evita deslocamento das pessoas.

Assim, poder-se-ia indagar: a reunião virtual pode ser usada como assembleia geral de condôminos? Resposta: sim. Todavia, nesse caso, há que tomar cuidados, pois, dependendo do tamanho do condomínio, a assembleia pode virar uma “balbúrdia” virtual, com excesso de rostos na tela e atropelos nas falas, podendo descambar para agressões recíprocas, vez que o ambiente virtual tem esse inconveniente, infelizmente bastante comum das redes sociais. O condutor da assembleia deve ser alguém preparado. Terá que ser democrático, porém, firme. Na prática, esse tipo de assembleia virtual, com rostos na tela, deve ser reservado apenas para pequenos condomínios.

Em suma, a reunião virtual, com módulo de gravação e devidos cuidados, pode ser usada como assembleia geral. Nesse caso, o edital tem que prever com bastante clareza as fases, a saber: a) apresentação das pautas; b) posicionamento da administração sobre a pauta primeira a ser discutida; c) discussão da pauta; d) votação; e) resultado da votação. Na sequência, adota-se a mesma sistemática para as pautas subsequentes. Outra opção, é apresentar todas as pautas e abrir a discussão e votação em bloco. Entretanto, esse modo pode gerar confusão, haja vista a multiplicidade de assuntos.

A assembleia virtual, por seu turno, no sentido estrito e sob o ponto de vista prático e formal, deve ser feita por fóruns. O evento, nesse formato, não se realizará num único dia, como se fosse uma reunião, mas ao longo de um determinado período, com vários iteres, a saber:

1ª FasePublicação do extrato do edital em jornal (se assim exigir a Convenção), encaminhamento do edital completo por e-mail para os condôminos, disponibilização do edital no site do condomínio (se este existir), entrega da cópia do edital nas unidades (se assim prever a Convenção) e afixação do edital em locais visíveis (mural, guarita etc.).
2ª FaseDepositar no sistema a pauta, com as respectivas informações e explicações/justificativas da administração.
3ª FaseAbertura do fórum de discussão, onde os condôminos poderão livremente manifestar sobre as pautas.
4ª FaseEncerradas as discussões, abre-se a fase de votação. Para evitar eventuais reclamações de problemas técnicos impeditivos da votação (internet com problemas, perda de celular etc), recomenda-se que a votação ocorra por mais de 1 dia, se possível, por 3 a 5 dias.
5ª FaseDivulgação do resultado.

Veja-se que, para realização da assembleia virtual, será necessário dispor de sistema. No mercado existem vários, porém, nem todos adequados a este formato de fórum. O mais importante aqui é ter um sistema seguro de votação, que garanta, com certo grau de certeza, que quem está votando é o condômino. Uma possibilidade é votar com certificação digital. Outra é utilizar-se de um número de telefone celular previamente cadastrado no banco de dados do condomínio ou da administradora. Uma terceira hipótese é criar senha e login para adentrar ao ambiente de votação. Enfim, não existe uma única solução. Os condomínios e as administradoras devem sopesar qual é o melhor sistema a ser utilizado.

Também é de suma importância que o sistema tenha possibilidade de ser auditado, como forma de dar segurança jurídica ao resultado. Sistema que não permite auditagem, não é apropriado para realização de assembleias virtuais. É arremedo de sistema.

Sobre a regra inserta na Lei de que “a manifestação de vontade de cada condômino equipara a sua assinatura presencial”, numa leitura rápida, parece ser apenas uma figura de retórica. Afinal, a manifestação de vontade não é expressa pela assinatura. Na assembleia presencial a assinatura de lista é mera confirmação de presença, indicando que a pessoa se apresentou, devidamente munida de documento de identificação e que alguém conferiu esse documento, confirmando a condição de condômino e considerou a pessoa apta para participar da assembleia, inclusive votar e ser votada. Só isso! A manifestação de vontade continua sendo através do voto, não importa se presencial ou virtual.

Todavia, leitura mais atenta do dispositivo leva a crer que o legislador, ao dizer que “a manifestação de vontade de cada condômino equipara a sua assinatura presencial”, considerou que na assembleia virtual está dispensada a lista de presença, com assinatura dos participantes. Neste caso, basta a manifestação de vontade do condômino em adentrar na sala virtual, eventualmente debater os assuntos da pauta e votar. Assim, como anexo da ata, resta apenas lançar a relação de nomes das pessoas que participaram da assembleia, obviamente, sem nenhuma necessidade de assinatura. Se o cartório exigir a assinatura da lista para registrar a ata estará, na prática, fazendo “letra morta” da lei.

A parte mais difícil de interpretação do dispositivo em comento certamente é a regra que permite prorrogar o mandato do síndico para 30/10/2020, “caso não seja possível a realização da assembleia virtual”. O problema reside em como justificar a não realização desse tipo de evento em pleno Século XXI? Certamente não vai ser por falta de internet ou de sistemas. Na verdade, o que pode ocorrer é uma acomodação natural do síndico que, diante da possibilidade, simplesmente queda-se silente, deixando seu mandato ser prorrogado por inércia. Nesse caso, os condôminos poderão usar as regras contidas no art. 1.350, § 1º ou § 2º, do Código Civil[5], ou seja, um quarto dos condôminos subscrevem o pedido ou, de modo isolado, o condômino solicita ao juiz para determinar a convocação da assembleia.

Entretanto, nos termos da literalidade da norma, não sendo possível a realização de assembleia condominial na forma virtual, os mandatos de síndico vencidos a partir de 20 de março de 2020 ficam prorrogados até 30 de outubro de 2020. Todavia, para aplicar o dispositivo, há que haver justificativa plausível.

Outra conclusão, é no sentido de que os atuais mandatos de síndicos ou de Conselhos (administrativo, consultivo e fiscal), vencidos ou a vencer após o dia 20/03/20, enquanto não realizada a assembleia geral de eleições, estão automaticamente prorrogados, até o dia 30/10/20. Assim, essa prorrogação deve ser reconhecida “ex officio”, tanto pelos bancos onde os condomínios têm conta corrente, quanto pela Receita Federal. Não há necessidade de nenhum ato ou documento do condomínio. A prorrogação deriva da lei.

Sobre assembleia virtual, tem-se ainda o PL nº 548/2019, de autoria da Senadora Soraya Thronicke, todavia, vamos aguardar tornar-se lei para fazer os devidos comentários. De antemão, é importante assinalar que o citado projeto de lei tem por escopo único acrescentar o art. 1.353-A ao Código Civil, numa tentativa de resolver o problema de quórum especial. Pelas disposições, a hipótese não seria aplicável a todos os casos, entretanto, as normas nele contidas detalham melhor o formato da assembleia e o modo de votação.

Por derradeiro, há que assinalar que muitas pessoas e até mesmo juízes, diante da pandemia, apressaram-se em dizer que era legalmente possível realizar assembleia virtual. Para tanto, invocou-se o princípio da legalidade do direito privado, qual seja, “ao privado é permitido fazer tudo o que a lei não proíbe”. Particularmente, nunca compartilharmos desse pensamento, por entender que o princípio da legalidade, neste caso específico, não é absoluto, em razão das disposições contidas nos arts. 1.352 e 1.353 do Código Civil[6], que trazem expressa referência às locuções “condôminos presentes” e “votos dos presentes”. Sempre entendemos que, para realizar a assembleia virtual, deveria haver, pelo menos, um “fiapo” de norma positivada, por exemplo, provimento de corregedoria do Tribunal de Justiça autorizando cartórios a registrar as atas ou previsão expressa em Convenção de Condomínio.

Tanto é verdade, que se fosse naturalmente possível fazer a assembleia virtual, não estaria o Governo e o Congresso Nacional editando lei para adotar “Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET)”. Também não se estaria investindo tempo e energia para aprovar o PL nº 548/2019. Fica aqui o registro.

*Autor

Ércio de Arruda Lins – Engenheiro, Bel. em Direito, Especialista em Direito Civil e Processual Civil, MBL em Direito Constitucional, Tributário e Administrativo. Professor de Direito Administrativo, Processo Administrativo e Direito Condominial. Consultor sênior condominial da Lins & Lins Consultoria.

[1] Art. 1º Esta Lei institui normas de caráter transitório e emergencial para a regulação de relações jurídicas de Direito Privado em virtude da pandemia do coronavírus (Covid-19). Parágrafo único. Para os fins desta Lei, considera-se 20 de março de 2020, data da publicação do Decreto Legislativo nº 6, como termo inicial dos eventos derivados da pandemia do coronavírus (Covid-19).

[2] ADI 6341

[3] Art. 1.348. Compete ao síndico: V – diligenciar a conservação e a guarda das partes comuns e zelar pela prestação dos serviços que interessem aos possuidores;

[4] Dicio: Dicionário On line de Português (https://www.dicio.com.br/enquete/)

[5] Art. 1.350. Convocará o síndico, anualmente, reunião da assembleia dos condôminos, na forma prevista na convenção, a fim de aprovar o orçamento das despesas, as contribuições dos condôminos e a prestação de contas, e eventualmente eleger-lhe o substituto e alterar o regimento interno. § 1 Se o síndico não convocar a assembleia, um quarto dos condôminos poderá fazê-lo. § 2 Se a assembleia não se reunir, o juiz decidirá, a requerimento de qualquer condômino.

[6] Art. 1.352. Salvo quando exigido quorum especial, as deliberações da assembleia serão tomadas, em primeira convocação, por maioria de votos dos condôminos presentes que representem pelo menos metade das frações ideais. (g.n.)

Art. 1.353. Em segunda convocação, a assembleia poderá deliberar por maioria dos votos dos presentes, salvo quando exigido quorum especial. (g.n.)